Dia 370 - Contestação

Final de um dia e ninguém percebeu o dedo cortado. Não foi um acidente, fez porque o quis, fez porque queria saber se ainda sangrava e a sensação de estar viva lhe animava.
Mas não havia curativos para disfarçar o corte, mesmo assim, era um corte de dedo e não de cabelo. Fez tudo certo, a tudo observava, com a expressão intacta. 
Eram tantos, aflitos, preocupados, agradecidos, sentindo-se culpados, dilemas, contas, trabalho, amores, filhos, saúde que não ia bem... todos ao pé de si e ela lá, compadecida mas com o dedo machucado.
Mas, o dia havia passado. Apagaram-se as velas, fecharam-se as portas e janelas, até o senhorinho que cuidava dela foi pra casa.
Desceu de onde estava, fez um alongamento, a idade estava pesando, sentou-se num banco, respirou fundo e olhou para o dedo... havia sangrado... Que bom! - pensou. 
O fato de ser considerada divina não havia lhe tirado a humanidade. E a dor pelo corte era também o prazer de seu livre arbitrio. 
E se descobrissem a verdade? - de súbito se questionou .
Que ela era humana com capacidade a divindade e não o contrário.
Haveria quem perdesse a fé é verdade.
Mas haveria tantos outros que se sentiriam motivados. - otimista sorriu.
Mas já era tarde... e, se lhe notasse o corte,  poderiam apenas considerar um defeito no acabamento e não uma verdade.
Tudo bem! - resiliente pensou.
O importante é que tentou, muitos dos seus colegas simplesmente se comportam como estátuas. 
Ela não.  Todo dia desce, dá uma alongada, faz um resumo do dia, encaminha as orações, intervém se necessário e gosta de dormir no banco, até que o senhorinho acorde e a coloque de volta ao seu pedestal.


Comentários

Elvira Carvalho disse…
Um bonito texto Geo. Que bom que voltou ao blogue. Tinha saudades dos seus textos.
Abraço